sábado, 17 de julho de 2010

No Gosto Doce e Amargo das Coisas de Que Somos Feitos por Edgar Nolasco



NO GOSTO DOCE E AMARGO DAS COISAS DE QUE SOMOS FEITOS

Por Edgar Cézar Nolasco


A peça No gosto doce e amargo das coisas de que somos feitos, do diretor Nill Amaral, inspirada em textos da escritora brasileira Clarice Lispector, não carece de comentários elogiosos simplesmente. Por uma simples razão: dizer que a peça é muito bem dirigida e que, por isso mesmo, prende a plateia do começo ao fim é óbvio. Dizer que os atores, nas mesmíssimas proporções, contribuem para o amarramento da plateia não seria novidade, principalmente para quem a assistiu. Dizer que o cenário contribui para o desfecho feliz da montagem é repetir o que não é novidade. Enfim, digo isso somente para dizer que não é o que quero tratar aqui. Quero falar do que somente eu poderia fazer. Claro que, em parte, está ao meu favor o fato de ser um estudioso da obra clariciana. Mas quero falar somente daquela persona da escritora que adveio a mim – mais precisamente pela atmosfera criada na peça – através da personas teatrais que se movimentam no palco, e que permitem que cada presente ali saia com sua Clarice.

Antes, porém, de falar dessa minha Clarice, entendo que deva rastrear as várias Clarices que estão em cena. No palco, temos uma Clarice romântica: que sonha com um mundo ideal, uma casa ideal. Ela se apresenta como uma paródia teatral da Clarice intelectual. Na peça, essa persona romântica satiriza a figura de uma mulher áspera e perversa que tende a se impor na literatura de Lispector. Na verdade, temos uma dona de casa que, por muito pouco, dá um soco no mundo. Temos também a Clarice que oscila diante da vida, ou melhor, blefa como forma de melhor enfrentá-la. Vale-se de uma estratégia muito pessoal, claricianamente falando, que é a de escamotear a vida, o viver. Na verdade, o grande e talvez único problema da intelectual tenha sido com o Real. Enfrentar o real equivaleria a aprender a viver, coisa que para Clarice era difícil, se não impossível.

Para mim, os melhores momentos da peça são quando as Clarices da peça entram num mutismo secreto e grande, dispensando palavras. Bastam olhares e alguns gestos de mãos e sobrancelhas. Temos ainda uma Clarice que porta um sutil lado erótico. Não é o sentimento do amor que ela busca, mas a relação que só existe entre uma mulher e um homem. Não fosse a presença do homem no palco, esse lado erótico da Clarice não apareceria. O café antes derramado no palco, agora se confunde com um suposto cheiro de corpos que se amarram animalescamente. Essa Clarice erótica, também vive certa tragicidade na própria pele. Para esquecer-se daquilo que sequer tivera um dia, põe-se a cantar uma cantilena que, pelo avesso, diz do que mais lhe falta no momento.

Esse momento é muito rico na peça, porque equivale a voltar à normalidade da vida, depois de ter perdido o próprio prumo da vida. Por incrível que possa parecer, as três Clarices, de No gosto doce..., não sofrem da falta de vida, como se poderia supor, por se tratar de uma peça em torno de Clarice Lispector. Elas pecam pelo excesso de vida. E aqui vejo uma grande e boa diferença entre as personas de Clarice, e a própria Clarice Lispector. Nesse sentido, a escritora teria aprendido com as personagens do teatro. Na peça, a vida é vivida até ao caroço. Talvez tal crudeleza se dê por que o diretor, e depois os atores, saibam que aquilo não passa de uma encenação.
Chego, agora, à minha Clarice antes anunciada. E explico-me: essa Clarice adveio a mim depois das Clarices da peça.

Apresentou-se-me uma Clarice irônica, sarcástica, detentora de uma gargalhada que não terminava mais. Seu sorriso largo ficaria por conta do que os outros achavam dela. Essa minha Clarice talvez tivesse algo daquela Clarice da vida real: olhava a vida e as pessoas como se já tivesse vivido e já conhecesse por antecipação todos os humanos. Se minha Clarice fosse encenada, talvez não tivesse nada a dizer, a não ser olhar distraidamente nos olhos das pessoas e pronunciar com voz de veludo que só nos resta viver a vida sem nenhum constrangimento.


Então, pelo sim, pelo não, o que às vezes lhe salvaria seria uma boa gargalhada em público e sem pedir perdão. No gosto doce e amargo da vida de que somos feitos traduz, desde o título, a situação delicada na qual Clarice encena um sorriso de soslaio que fica suspenso entre a vontade de sorrir e o desejo de contê-lo. Diante do outro, Clarice dispõe da situação que melhor lhe aprouver.

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